II. ECLIPSE
Após alguns anos de grande desgaste mental na produção de cartuchos para a Famicom entre 1991 e 1993 com a EIM, Eno afastou-se da indústria dos jogos de vídeo por um breve período de tempo, tornando-se um colaborador de uma revista automóvel, porém mantendo o contacto com as notícias do mundo da tecnologia digital. Nas suas visitas aos Estados Unidos da América conheceu as novas tendências que apareciam dentro das empresas de componentes electrónicos e de software, a posição cool e relaxada com que estes negócios se efectuavam - altamente contrastante ao modelo rígido e severo praticado na esfera empresarial do Japão. Consequentemente, esta foi uma das razões principais por detrás da fundação do seu novo estúdio, a WARP, inicialmente baseado na criação de produtos para a mais recente plataforma concebida pelo carismático Trip Hawkins - a efémera 3DO.
A nova e poderosa empresa de Hawkins estava a abrir uma nova sucursal no Japão e foi muito receptiva aos projectos e ideias demonstrados por Kenji Eno. Por outro lado, a nova consola baseava-se no formato CD-ROM, uma tecnologia de baixo custo que permitiu às pequenas companhias o lançamento dos seus produtos para uma audiência mais alargada, ao contrário dos cartuchos de elevado custo de produção. Desta forma, a WARP foi fundada não apenas como uma consequência do novo sistema que Trip Hawkins levou até ao Japão, mas também como um resultado directo da era do disco compacto: definida pelos custos de produção inferiores e diminuição dos riscos de investimento.
Mesmo se o mercado Europeu e Norte-Americano apenas viriam a conhecer o trabalho de Eno como fundador e produtor através do jogo D (ou D'S DINNER TABLE), o mercado Japonês já dispunha há alguns anos de jogos como TOTSUGEKI KARAKURI MEGADESU!!, um estranho jogo de luta na primeira pessoa, assim como FLOPON WORLD, um puzzle game que viria a ser lançado novamente sob o nome TRIP'D. Outros lançamentos foram OYAJI HUNTER MAHJONG (1995) ou SHORT WARP (1996), uma celebração visionária do imaginário da WARP na forma de diferentes mini jogos.
D foi, porém, o verdadeiro título da maturidade que consagrou Eno como um autor capaz de explorar um drama interactivo usando o potencial de gráficos e animações pre-render. Numa tentativa ousada de romper com a prática comum de filmar actores contra o ecrã azul, a WARP deu vida a Laura, uma das primeiras actrizes virtuais a estrear num videojogo. De forma a sugerir emoções complexas, os elementos faciais da synthespian foram criados de forma altamente maleável, possibilitando diferentes expressões.
Ainda que a mecânica criada para este jogo se inspirasse no velho género da aventura gráfica, D fazia uso das mais recentes tecnologias de computação gráfica. Admiravelmente, toda a narrativa da procura de Laura pelo seu pai - um homicida barricado num hospital - foi somente inserida no jogo quando o jogo já se encontrava numa fase tardia da sua produção: um aspecto que pode justificar os mecanismos de storytelling, na forma das memórias e súbitos flashbacks de Laura. Como experiência de cariz cinematográfico, D foi um dos primeiros jogos de consola a apresentar uma atmosfera e temática verdadeiramente madura, com personagens complexas cujos actos eram definidos por motivações imprevistas.
Afastando-se da complexidade dos modelos 3D e sequências vídeo em full-motion, Kenji Eno usou a sua sensível percepção sonora como um ponto de partida para a criação de um título obscuro da SEGA Saturn: REAL SOUND: KAZE NO REGRET, literalmente O Arrependimento do Vento. Definido pela ausência de imagens, este conceito de jogo revolucionário originou do contacto de Eno com deficientes visuais, muitos deles entusiastas de jogos de vídeo - algo que justificaria também a escolha pouco comum de uma mensagem escrita em Braille no interior da embalagem do jogo.
Com uma comovente história de amor em Tóquio, espalhada por entre os seus quatro CDs, REAL SOUND apelava ao discernimento sonoro e ao raciocínio mental. Em vez de usar os visuais como o factor predominante, o projecto da WARP focava-se na qualidade da escrita do argumento e no talento vocal que lhe deu vida. Tendo rejeitado uma série de noções sobre a funcionalidade de um vídeojogo, este título também provou ser essencial na construção da identidade da WARP, declarando-se como um estúdio autónomo e de perspectivas criativas únicas.
Em 1997, o conceito de filme interactivo foi renovado com a edição do título ENEMY ZERO, uma aventura espacial que presta homenagem directa a alguns dos mais conhecidos clássicos da literatura e cinema de ficção-científica. Nesta segunda incursão da actriz virtual Laura, o estúdio dirigiu os esforços para uma suave transição, contrapondo as sequências pre-render com o 3D em tempo real - a solução mais adaptada para o atípico sistema de combate. Como o título tão claramente indica, a ameaça consiste de uma espécie alienígena invisível ao olho humano que, por meios desconhecidos, permeou o espaço interior da estação espacial Aki.
Estas criaturas, classificadas como E0, apenas podem ser localizadas com a utilização de uma arma que emite diferentes tons de acordo com a sua posição e proximidade: de novo, o uso do som como componente essencial num jogo da WARP. Mais do que um inegável feito técnico, ENEMY ZERO também representa um dos maiores triunfos profissionais de Eno, quando este contactou e persuadiu o ilustre compositor e pianista Michael Nyman a criar os temas principais da banda sonora do jogo.
O mesmo ano de 1997 iria, por outro lado, ser portador de alguns dos maiores obstáculos e infortúnios para este estúdio. Numa segunda tentativa de entrar no mercado de consolas, o novo sistema 32-Bit da 3DO, baptizado M2, foi vendido à gigante Matsushita (vulgarmente Panasonic). Diversos títulos encontravam-se já delineados e de facto em fase de execução para este sistema, incluindo um line-up promissor da Konami. Não obstante das impressionantes performances deste hardware, a Matsushita cancelou o seu lançamento devido à impenetrabilidade do mercado de então: a Sony ultrapassava todas as expectativas projectadas para a sua Playstation; os valores iniciais das vendas da Nintendo 64 quebravam novos recordes; a SEGA continuava determinada na luta por uma porção generosa do mercado com a Saturn.
Entre os títulos planeados para o lançamento da Panasonic M2 encontrava-se D-2, uma sequela pouco comum do jogo original de 1995 que foi riscada já em avançada fase de produção. As imagens e vídeos recolhidos até agora parecem mostrar um entorno inteiramente realizado em 3D - muito possivelmente o melhor motor gráfico a correr num sistema doméstico até então - assim como uma apresentação extremamente cuidada. Argumenta-se que esta era uma sequela directa ao jogo D, onde o filho de Laura, o protagonista, se encontrava preso numa enorme mansão, palco para eventos paranormais. A especulação e teorias em redor deste título inédito continuam ainda hoje.
Com o lançamento da nova consola 128-Bit no mercado japonês, a SEGA Dreamcast, Eno recapturou a experiência de REAL SOUND: KAZE NO REGRET numa reedição do clássico de Saturn que incluía um novo "modo visual", acompanhado de fotos e imagens da autoria do próprio designer. Este original drama sonoro, editado em simultâneo com a saída da consola, notabilizou-se também por vir acompanhado de um GD-ROM extra, intitulado D-2 SHOCK! - uma preview interactiva da nova iniciativa da WARP.
Como resultado directo das boas relações profissionais entre a SEGA e seu estúdio, Eno decide avançar com uma versão renovada e alternativa de D-2, lançada para a Dreamcast em 2000. Laura, que parecia ter sido preterida na versão M2, assume de novo o papel central nesta nova trama passada nas montanhas selvagens e geladas do Canadá.
Um dos aspectos nos quais se notou maior investimento neste projecto foi a criação de um argumento inteligente e bem escrito, pautado pelos seus diálogos vagos e indirectos. O pano de fundo predominantemente branco foi exaustivamente trabalhado para poder operar em tempo real, pela primeira vez em toda a história do grupo, relegando o uso de CGI para pontuais sequências de maior detalhe.
Com D-2 uniram-se com fluidez as características de diferentes géneros como acção, aventura e RPG. Surpreendentemente, os espaços interiores mantiveram um esquema de exploração em perspectiva subjectiva, evocando com grande perícia o género e jogabilidade previamente explorado no primeiro título da série D - tal era o detalhe do engine 3D erguido pela equipa. Os altos valores de produção, narrativa intrigante e ambiência singular, juntamente com o bizarro acompanhamento sonoro composto por Eno, resultaram num dos mais importantes títulos de terror e de temática paranormal alguma vez editados para uma consola.
Após mais de cinco anos de actividade, todos os esforços não foram suficientes para manter o grupo vivo, levando Eno à decisão de alargar o seu mercado até novas áreas. Durante um breve período, a renascida SUPER WARP lidou com outros conteúdos multimédia tais como DVD, networking ou música online, até ao ponto em que se esmoreceu novamente, nunca mais tendo regressado à produção de jogos de vídeo. Como uma força criativa autónoma, a WARP enunciou um novo parágrafo no capítulo do mercado independente Japonês, caracterizado pela irreverência do seu líder e fundador multifacetado.
III. BLISS - Entrevista >>