THE DARK EYE
Malevolência



COReplay - 15 / 03 / 08

 


II. PERSONAS

A ataraxia com que THE DARK EYE se introduz, onde a inexpressiva e rude face do nosso personagem se contempla no reflexo da água é intercedida pela recepção fria e inquietante na casa do seu tio: um velho isolado nos seus pensamentos, moralidade retrógrada e nos seus estranho hábitos de pintura. Mais calorosa recepção é proporcionada pelo irmão mais velho, personagem viajada porém determinada a assentar e a sua paixão, a jovem prima.


Este momento de reencontro na sala do piano é pautado por uma estranha e súbita indisposição do nosso personagem, que desta forma alterna para uma nova realidade de espaços transfigurados. É nestes momentos de devaneio que vamos de encontro aos vestígios de memórias, ecos de acontecimentos horrendos de outro nível espácio-temporal que residem em pares de objectos: cada objecto simboliza a viajem até aos confins da mente assassina ou assassinada.

A experiência de jogo não impõe regras à conduta exploradora nestes momentos ausentes, onde a finalização eventual de um acto avança a história central. O balanço evolutivo é, desta forma, obtido entre a progressão de ambas as camadas narrativas, somente pontuadas por escassos momentos facultativos e de relação íntima com a trama nuclear, onde o jogador é remetido para sequências que ilustram dois singulares poemas de Poe.


O suporte temático da corrente interactiva é vasto e provocador, espelhando uma porção considerável das mesmas características humanas retratadas pelo ilustre autor ao longo da sua vida e obra. A par da morte, padrão que ornamenta a generalidade do jogo, a loucura – ou, melhor, a escalada rumo à insanidade mental – impulsiona a força motriz na evolução da personagem central e das múltiplas personalidades congregadas. Todas elas, não obstante das diferentes motivações e estados de doença, padecem de uma fragilidade psicológica que atenua a barreira entra a sanidade, vulgo regularidade de padrões comportamentais, e o extremismo instintivo que os compele a cometer actos insanos. A fixação em objectos ou características físicas das vítimas, a dualidade de sentimentos em relação às mesmas ou inclusivamente o reforço incessante de rancores apresentam-se como apologias pseudo-racionais enunciadas pelas mentes criminosas que visitamos, momentos antes de explodirem em destempero.

Em oposição à morte imediata, também encontramos outra variante que se encontra frequentemente citada no legado de Poe, a morte por via da enfermidade, em particular a tuberculose. Este declínio prolongado é faustosamente articulado pela inclusão do poema “The Red Death” em directa relação com a morte abrupta de uma personagem, uma alegoria ao sintoma desta doença quase irreversível na época aqui recriada. Para além das temáticas partilhadas, Russel Lees idealizou outras formas de estabelecer um ponto na cronologia inspirando-se, por exemplo, na disciplina científica, agora arcaica e improfícua, da Frenologia, excepcionalmente recriada no mapa de eventos do jogo, ordenados em subdivisões da mente.

Parte do efeito absoluto de inquietação proporcionado por THE DARK EYE deriva da oscilação espacial entre a reclusão dos espaços interiores, à abertura dos espaços de ruas desconhecidas, até ao confuso labirinto de uma adega. A quase absoluta ausência de objectos para interacção foca o jogador nos objectivos centrais, não permitindo grandes diversões da linha condutora, ao mesmo tempo que produz uma sensação de vazio: a ausência de distracções na casa do Tio representa a vida oca e reservada desta personagem.

Da acumulação de todos estes componentes resulta um modelo experimental curto, mediante as tendências actuais, porém capaz de desferir um profundo golpe na concepção moderna e generalizada de como uma adaptação de uma obra literária para um jogo de vídeo deve funcionar.

A obra de Poe é ubíqua em THE DARK EYE sem permitir a sobreposição à pessoalidade dos conteúdos criativos da equipa, que claramente labutou pela criação de espaços e personagens com medida própria e uma ambiência circundante irrepreensivelmente única. Com a sua escrita engenhosa e poética, Lees alcançou aquele nível de superioridade que é raramente encontrado neste meio, naquele que permanece um dos paradigmas da dramaturgia para um palco virtual. A frívola liberdade concedida ao jogador na resolução dos diversos actos contrapõe-se ao vigoroso elemento de Destino: um final único e irreversível para uma narrativa selvagem, verbalizada num sujeito plural.

 

III. Entrevista com Russ Lees >>


 

 

> “There you are. You haven’t just come? It is exceedingly dangerous to traverse the coast at this time of day." - após mais de uma década, as falas continuam memoráveis.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

> Um momento alto do jogo, a sequência de imagens à qual se sobrepõe o poema 'Annabel Lee', o relato de um amor jovem e do pathos que o termina precocemente.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

> Superfícies reflectoras funcionam como pontos de partida para um estado de transe, em que a personagem se desdobra em múltiplas personas.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

> A Frenologia é uma disciplina pseudo-científica agora extinta que divide a zona cerebral em porções de acordo com a sua propriedade representativa. A par da Craniometria e da Fisiognomia, estas àreas obsoletas do conhecimento serviram na sua altura de apoio a muitas teorias sobre psicologia criminal.

 
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